Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

DiverCidades - Alba Iulia

Para começar o novo ano, memórias de uma viagem

Fachada da biblioteca Batthyaneum, Alba Iulia

A cidade e os livros

A fachada do edifício que abriga a biblioteca Batthyaneum nada revela da monumentalidade de seu interior. Antiga igreja católica de arquitetura sóbria e dimensões imodestas, adaptada para comportar um observatório astronômico, uma singular coleção de objetos (mapas, moedas, tábuas escritas, peças de cavalaria etc.) e uma notável biblioteca. A instituição foi instalada no final do século XVIII, no coração de Alba Iulia/Karlsburg/Gyulafehérvár, esta cidade antiga, capital da Dácia Romana (Apulensis), que remonta ao segundo século de nossa era.
É de fato curioso o contraste que ali se observa entre a cidade e o complexo Batthyaneum. Os vestígios arqueológicos descobertos no centro de uma enorme fortaleza, situada às margens do rio Mureş/Maros, denunciam o caráter predominante da função militar na urbanística da Apulum dos dácios. No século IX, a cidade ressurgia sob o nome de Belgrad/ou Belograd (Castelo Branco, nas línguas eslavas), tendo-se tornado sede do duque de Geula/Gyulia/ou Jula. A bela catedral que domina a face interna da praça fortificada data dos séculos XII e XIII, símbolo máximo da presença do papado nesta cidade que se tornara sede do episcopado da Transilvânia, sob o reino do católico Santo Estêvão (c. 975-1038), o primeiro rei da Hungria .

Catedral de Alba Iulia, sec. XII
Foi nessa mesma fortificação que se travou a célebre batalha de Johan Corvin (1356-1456) contra os otomanos, em 1442. Um século depois, a então Gyulafehérvár foi elevada à condição de capital do Principado da Transilvânia. Embora Alba Iulia tenha se desenvolvido sob o Império Húngaro, novas batalhas travadas durante toda a época moderna sedimentaram nessa cidade-fortaleza diferentes camadas de civilizações, povos, regiões, crenças e templos. Assim, a coroação de Ferdinand da Romênia, em 1922, simbolizaria o ato de Miguel, o Bravo, em 1601, primeiro monarca a reunir sob sua Coroa os principados da Valáquia, Moldávia e Transilvânia.
Mas a cidade-fortaleza não nos conta apenas estes momentos-chave de formação territorial e política a um só tempo de magiares, romenos e saxões. A função militar de Alba Iulia atinge seu ponto alto no alvorecer da contemporaneidade, quando a antiga fortaleza recebeu novos bastiões em sua face oriental – sete, ao todo, entre 1716 e 1735 – para a proteção contra os otomanos. Obra do arquiteto Giovanni Morando Visconti, segundo as coordenadas do sistema Vauban , que não deixa dúvida sobre a grandeza da Casa de Áustria no Setecentos.
Foi nessa mesma época que Ignatius Sallestius de Batthyan (1741-1798) fundou aquele que seria o bastião da cultura ilustrada de Alba Iulia, senão de toda a Transilvânia. É bem verdade que, como temos visto, a região parece bem provida de templos e livros que nos convidam a adentrarem tempos diversos de sua conturbada história. Em todo caso, a Batthyaneum, fundada em 1792, ostenta uma realidade bibliográfica e documental digna de nota: mais de 71 500 livros (entre manuscritos, mais de seiscentos incunábulos, além de raridades impressas após 1500) . Desde 1961 ela é filiada à Biblioteca Nacional da Romênia .
Interior da biblioteca Batthyaneum, Alba Iulia
Sobre seu patrono, Ignatius Saletius, conde de Batthyàn, algumas palavras: “Iniciou os estudos no Colégio Piarista de Pest para logo em seguida frequentar diversos outros centros europeus: Universidade dos Jesuítas Trnovo/Nagyszombat, no Seminário de Esztergom e na Universidade dos Jesuítas de Graz” . Ordenou-se em Roma, onde cumpriu os estudos no Collegium Germanicum et Hungaricum, em 1763. Daí em diante, seguiu uma carreira político-religiosa meteórica nos tempos do Imperador José II (1765-1790). Vivendo sob os ventos revolucionários que abalaram o Velho Mundo e as casas reais de oeste a leste, o então bispo da Transilvânia se envolveu em pelo menos três questões espinhosas que tocavam os interesses da Áustria, da Hungria: defendeu, em 1781, o polêmico Edito de Tolerância, que observava o exercício da fé de religiões não católicas; desempenhou papel importante na defesa dos padres católicos durante as revoltas camponesas de 1785-1785 na Transilvânia; foi protagonista do movimento de reforma do ensino, imposta pelo Estado, em 1776, após a expulsão dos jesuítas, por meio da Ratio Educationis. 
Por esse breve resumo não é difícil imaginar a Batthyaneum como fruto dos anseios e contradições de um nobre religioso, partidário da Aufklärung . A própria biblioteca se instalara no contexto de dissolução das ordens religiosas, vindo a ocupar a igreja do convento dos Trinitários com a finalidade de ali se instalar uma biblioteca pública e uma academia nos moldes clássicos, tão em voga naqueles tempos. O resultado não poderia ser mais eloquente. A fachada discreta da igreja, em contraste com uma praça-forte de dimensões colossais, dissimula um projeto sofisticado que ocupa toda a porção superior da nave do edifício, donde observamos, estupefatos, dois andares repletos de livros, que preenchem belas estantes decoradas com alegorias greco-latinas.
Difícil descrever o acervo bibliográfico desse templo impetuoso. Uma tarde foi muito pouco para observar em detalhe os livros selecionados pela bibliotecária diligente que nos acolheu. Ao todo oito manuscritos sobre pergaminho, três raridades impressas na era pós-Gutenberg, ex-libris de notáveis e outros objetos não menos impressionantes, entre eles tabuinhas com escrita cuneiforme gravadas em terracota, placas impressas sobre vidro do célebre Códex Aureus e algumas peças de cavalaria datadas dos séculos XVI e XVII . Não houve oportunidade para conhecer os documentos conservados neste acervo, na maior parte reveladores da vida e obra de seu patrono. 
Parece interessante, todavia, atentar para o caráter multilinguístico da coleção bibliográfica, testemunho da intensa circulação cultural observada nessa região desde a época moderna. Manuscritos e impressos latinos predominam, o que torna esta instituição mundialmente reconhecida pelos estudiosos dessa área; obras em romeno, manuscritas e impressas em cirílico ; raridades da imprensa húngara, do século XVI ao XVIII ; manuscritos e impressos em alemão, os quais concorrem para os estudos sobre a presença de imigrantes da Saxônia em toda a região, cuja importância toca não apenas as questões relacionadas com a História do Livro, como vimos anteriormente, mas com a própria formação social, religiosa e arquitetônica da Transilvânia.

Artigo publicado na íntegra em Livro, n.2 - Revista do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição, São Paulo, 2012.

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